terça-feira, 16 de agosto de 2011
Barra Limpa ( Relato de Tau Golin)
Na última quinzena de julho, aproveitei o nível alto das águas para navegar de Porto Alegre a Palmares do Sul. Durante muito tempo, no século XX, o trajeto constituiu a primeira parte de um roteiro interessante. Um vapor saia da capital pelo Guaíba, passava o farol de Itapuã, entrando na lagoa dos Patos, contornava a ponta das Desertas, penetrava na lagoa do Casamento, ingressava na barra do rio Palmares e subia até a vila/cidade.
Naquela costa existia considerável empório. Um trem levava os passageiros e cargas até Osório. Ali, um porto conectava, através de lagoas e canais, a Torres. Com o auxílio do trem se navegava a costa por dentro do continente. Dragas mantinham a profundidade para a navegação mais pesada. Este sistema foi destruído há algumas décadas. O trem foi desativado. As dragas retiradas. Sobre os canais construíram pontes sem respeitar altura de vão para a passagem de barcos. Se ainda fosse patrimônio rio-grandense, não se precisaria de cérebro privilegiado para perceber a multiplicidade de seu uso; o turismo, por exemplo, estaria em festa.
Do porto de Palmares também ocorria o fluxo de pessoas e mercadorias pela costa litorânea para o Sul.
O trajeto de Porto Alegre a Palmares do Sul, aparentemente livre da especulação rodoviária, também foi abandonado. Inclusive a “navegação de recreio” é impossível. A causa poderia ser atribuída a falta de visão e a incompetência que deixaram à “natureza” três pontos de bloqueios: o banco do Abreu, o canal do Furado e o assoreamento da barra do rio Palmares. No verão, o calado fica em torno de um metro de profundidade. No inverno, aumenta um pouco. Neste julho de enchente, passamos com 1.90m. De qualquer forma, são trechos muito pequenos, de fundo de areia, nada que um trator sobre flutuante não solucione.
A situação de Palmares do Sul é similar a Itapuã, a Arambaré, a Barra do Ribeiro, etc. A lista é imensa. A situação de São Lourenço é exemplar. Desde a enchente que submeteu a cidade a uma tragédia, os entulhos assorearam a barra. Está com menos de um metro. Se ninguém sai, ninguém entra – pescadores artesanais, barcos de turismo e navegadores que visitavam a cidade, ou que tinham ali importante refúgio. Algo deverá acontecer também em Itapuã, em Viamão. Sua barra e entrada do rio formaram uma elevação. Caso se produza condições peculiares no tempo, aquela comunidade poderá sofrer igual problema.
O fato é que há um século o homem vem assoreando o Guaíba e a lagoa dos Patos. O mais visível é que, nas enchentes, porcos do Planalto Médio ofertam churrasquinho extra no Lami. Mas a cada chuva, toneladas de entulhos vão para o seu leito, carregados pelos grandes rios e riachos. Aquilo que é carregado pelos grandes rios precisa de remoção posterior, mas grande parte da imundície das sangas poderiam ser contidos com mecanismos simples. Mas os técnicos do Rio Grande jamais ouviram falar de sistemas de caçambas com reduções mecânicas, usados desde a Mesopotâmia e povos da Antiguidade; dos egípcios aos incas, etc. Boias de contenção deve ser algo muito complexo para se colocar nas bocas de despejos.
Entretanto, nossos sofisticados técnicos são capazes de projetar braços automatizados, em especial se depender de financiamento internacional para ser implementado. O que esperar de um serviço público que não conseguiu ainda eliminar as poças do Parque da Redenção? Um taipeiro da fronteira, com uma única pá de corte, já teria solucionado o problema.
Enquanto isso, tudo chega no pobre e moribundo Guaíba. Onde crava espontaneamente um pau ou taquareira, novo banco se forma ou aumentam os existentes. A realidade é que o rio está quase inviável à navegação. O que o homem e a natureza jogam para dentro, ninguém tira. Avançaram sobre seu leito pela margem leste; entulharam seu fundo, levantando-o. Aos poucos, obras vão eliminando seu “escape” pelo oeste. Mas o volume de água continua considerável, inclusive chegando ao seu leito em maior volume, acelerado pela pavimentação, desmatamento e todas as condições fartamente conhecidas. Senhores, levantem e aumentem o Muro da Mauá… A natureza é previsível!
No geral, nossos imensos espaços aquáticos são vítimas de políticos de pouca visão e de funcionários ineptos Graça uma doutrina de que a natureza é intocável. É o criacionismo da preguiça! A ciência demonstra que a natureza pode ser melhorada pelo homem. A tese da regeneração espontânea só tem destruído o Guaíba e a lagoa dos Patos. O que falta é, no mínimo, o governo estabelecer uma política de contenção dos fluxos de entulhos e remoção dos assoreamentos, além de implementar canais de navegação. O mais impressionante dessa estupidez: dragas que mantém o canal de navegação para navios, em especial na lagoa, não podem remover “para fora” os sedimentos; são obrigadas a espalhá-los nas partes mais fundas. Dá para acreditar?
Desde o século XVIII, se formou considerável acervo de cartas náuticas, com muitas informações, a exemplo das profundidades. Poderiam servir de parâmetros para uma política de salvamento. Parece evidente que, emergencialmente, o núcleo do poder deveria contar com uma espécie de gabinete das águas para assessorá-lo. Todo mundo apita sobre as águas, os cruzamentos e sobreposições de (ir)responsabilidades são incontáveis. A diversidade sem um centro organizador conduz à imobilidade. Um gabinete, ou grupo de trabalho, ao menos poderia iniciar os trabalhos para elaborar um “código” (ou incluindo como parte de algum existente), reunindo a legislação difusa e normas esparsas, sistematizando todas as atividades. Diante do caos das águas do Rio Grande urge que alguém assuma uma concepção de totalidade e se encarregue, de fato, da fiscalização. Onde não for sua responsabilidade e o serviço estiver acéfalo, que o faça sob autorização de convênios, em especial no meio ambiente, pesca, obras e navegação. A Companhia Ambiental da BM parece ser o órgão mais próximo da tarefa por estar presente em todo território.
No entanto, seria ridículo que mais um gabinete de trabalho postergasse as medidas emergenciais. Dentre elas, a de declarar como política de Estado a limpeza de todas as barras das cidades e vilas com vocação náutica. Voltar a situação do século XIX para ter algum parâmetro e não ficar no achismo dos discursos de preservação. Milhares de embarcações, talvez, assim tenham aonde ir. E não se precise de uma cheia para entrar na lagoa do Casamento e ir a foz do rio Palmares, águas que Garibaldi navegou para embarcar os lanchões nos carretões e levá-los até o Atlântico.
As barras limpas abrem a possibilidade dos rio-grandenses se encontrarem com a sua história. Sairmos da vexatória situação de termos um complexo exuberante de águas (Jacuí, Guaíba, lagoas dos Patos e Mirim, etc.) sem portos e sem espaços para navegar. Restam as fotos do pôr do sol…
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Tau, que bom encontrar relatos e depoimentos tão voltados para encontrarmos nossas origens, nossa história, nossa independência. E, ainda mais, focados na relação com as águas.Parabéns!
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